Não se sabe bem seja o que for senão muito tempo depois de ter aprendido.
(Autor desconhecido)Cresci a ouvir falar, na aldeia da minha mãe, de uma determinada maneira que caiu já em desuso. A propósito do último post, lembrei-me de contar a mesma história com essa linguagem própria daquela região da serra do Açor.
Era uma vez uma rapariga que morava com a madrasta e as irmãs, que eram ruins como as cobras. Chamavam-lhe Gata Borralheira e ela passava o tempo a bulir e nem conseguia enxergar nada do que se passava na terra. As irmãs eram umas malangonas e estavam sempre atidas a ela. Só pensavam em mercar roupa para arranjarem um conversado.
Chegou a romagem de Nª Sª das Preces. A rapariga tinha botado na barrela o único vestido que tinha p'ra morde também ir à festa, mas ele era tão velho que, quando o pôs a corar, esgaçou-se. Então, aventou com ele para a estrumada da palheira.
Ainda era de alpardo, a madrasta e as irmãs, muito bem arreadas, lá foram vereda arriba com a bucha para a merenda à cabeça, enquanto ela ficou em casa a chorar. Por via das dúvidas, ergueu-se da cama e, quando estava a varrer a borralha da pilheira, apareceu a ti Maria que lhe trazia um vestido e uns sapatos que a filha tinha trazido de Lisboa. A rapariga vestiu-se num nadita e pôs os pés ao caminho, enquanto a tia Maria lhe dizia para voltar antes da madrasta e das irmãs, se não quitava-lhe a roupa. Quando assomou ao oiteiro do Vale de Maceira, ia muito enfadada, mas como viu tanta gente que até empeçavam uns nos outros, agachou-se e bebeu um coisito de água numa poça.
Foi logo a seguir para o bailarico, onde conheceu um rapaz muito asadinho, com quem andou sempre a bailar. Era já muito de noite, quando ela se lembrou que tinha que sumir dali para fora, quando não chegava depois da madrasta e das irmãs.
Deu tantas topadas pelo caminho, que perdeu um sapato e ficou com os pés todos consumidos.
O rapaz foi atrás dela e encontrou o sapato. Durante a noite não teve parança e, assim que luziu o buraco, correu a serra toda à procura da dona do sapato.
Em casa da rapariga, as irmãs inquietaram-se tanto para calçar o sapato que os pés empolaram todos. Muito arrenegadas foram chamar a irmã que enfiou logo o pé no sapato, deixando-as esbugalhadas de inveja.
Obrigada pela sua visita. Volte sempre.
8 comentários:
Lourdes;
Bela tradução e improvisação de um dos mais belos contos infantis da Disney que é Cinderela ou A Gata Borralheira e com esse sotaque ficou simplesmente divino.
bjs, Lourdes.
Osvaldo
Lourdes
Imagino que foi assim que minha mãe ouviu pela primeira vez a história da Gata Borralheira.
Adorei, minha amiga.
Beijos e parabéns ao seu Açor pelo segundo aniversário. Seu cantinho está cada dia melhor.
Lourdes
É um texto delicioso! "Atidas, p'ra morde, de alpardo, um coisito, asadinho, topadas"...são palavras vernáculas dum linguajar muito recente dos nossos avós! Fica em nós uma tremenda nostalgia!
Depois da"gíria" da sua postagem anterior, uma boa surpresa literária! Parabéns.
Beijos.
J. Pinto
Osvaldo,
Alguns dos vocábulos que empreguei eram utilizados frequentemente pela população da serra do Açor no início do século passado. Com o tempo, entraram em desuso e hoje já poucos são aqueles que os utilizam.
Bjos
Lourdes
Dulce
Acredito que, na região de onde a sua mãe era natural, se empregassem algumas destas palavras que hoje em dia já quase não se ouvem. Algumas delas eram comuns em muitas regiões portuguesas.
Áí no Brasil também há zonas que têm uma linguagem própria, pelo que me apercebi por algumas telenovelas. Também devia ser engraçada a história da Cinderela contada nesse tipo de linguagem.
Beijinhos
Lourdes
Beijinho
José
Há tempos, fiz uma peça de teatro para representar na festa da aldeia, onde uma grande parte das palavras eram deste teor. Acrescentei algumas que eram mal pronunciadas e deu como resultado uma grande brincadeira.Precurar em vez de procurar, atão em vez de então, inda em vez de ainda,...
Quando me enviaram o e-mail que transcrevi no post anterior, lembrei-me logo de fazer a "tradução" para a linguagem da nossa região. Acho que foi uma maneira engraçada de recordar alguns vocábulos quase esquecidos, mas que fazem parte da nossa Língua tão maltratada actualmente.
Beijinhos
Lourdes
Querida amiga Lourdes,
Ri-me como uma tola!!!
Está demais. Adorei :)))))
Agora vais-te rir tu. Sabes que vivo no campo, a 4 kms do centro de tudo, mas no campo.
Aqui as pessoas falam um Português ainda muito próximo do que relatas.
Há uma "amiga", a Tia Vira, que vem cá de vez em quando, com uns ovos, ou algo do género, e começa de contar o que por aqui de passa.
Sabes que eu agora entendo-a, mas no início era uma confusão, porque , por exemplo a TV dela não dá líquida, ela esteve a limpar os almários, o marido teve que estar a oxogénio, e uma vez ela perdeu-se num brosque, e gosta muito de idálias...olha um sem fim.
Quando ela sai eu e o José só nos rimos...somos muito mauzinhos.
Eu já tentei corrigi-la e ela até disse que agradecia, mas no minuto seguinte está a dizer a mesma coisa...não vale a pena.
A sério, tenho um sorriso de orelha a orelha.
Guarda bem esse tesouro.
Beijinhos
Ná
depois de ler esta historia,fez-me lembrar a minha mae que nao sabe ler nem escrever,que tambem fala assim.antigamente era essa a lingua portuguesa que ensinavam na escola(aqueles q podiam ir,claro)em geral os rapazes pois as raparigas era perigoso podiam escrever aos namorados sem os pais saberem.adorei,pois eu sou do concelho de valpaços-tras-os-montes e ainda se fala com esse dialecto entre os mais antigos,meio portugues,espanhol e mirandes misturado.ex:feijao de frade(chicharro)grao de bico(ervanço)abobora(botelha)abobora laranja(jermum)etc,etc...tem coisas em que é bom ir ao tempo antigo recordar.tambem tenho uma historia algo parecida com a sua,mas sem boas lembranças para contar,sinto que me faz mal a minha historia,sei que tenho uma vida de perturbada causada por tanto sofrimento,maus tratos,a mim e na minha mae.ja me apeteceu conta-la(sabendo que conseguiria ultrepassar essa barreira que me bloqueia)fazia-o.talvez um dia quando me sentir com forças.bjinho
Enviar um comentário